A gente sempre pensa que é exclusivo. Minha amiga
psicanalista disse que quando somos bebês achamos que o seio da mãe é só nosso.
E é um amor tão grande que dói muito quando temos de dividir aquele seio com o
mundo. É a tal da falta primordial. Depois passamos a existência tentando repor
aquele amor, sem sucesso, claro. Porque igual àquele nunca mais.
Filosofando com seus botões Leonora olhava a chuva forte que
molhava a paisagem mineira pela janela do ônibus da Viação Aleijadinho que a
levaria, finalmente, de Monte Negro até São Paulo. Pensou em voz alta: acredita
que nunca saí de Monte Negro? O passageiro ao lado não ouviu. Estava com fones
de ouvido. Leonora disfarçou o vácuo. Lembrou da casa da infância. Lembrou da goiabeira
e da sua alegria quando ela florescia e era invadida por abelhas bem miudinhas.
Leonora gostava de mexer na terra, gostava do cheiro, da textura, gostava do
mistério da vida: plantava uma sementinha e brotava um pé de couve. Era
bibliotecária porque teve medo de ir pra capital estudar agronomia. Foi
covarde.
Agora não. Agora não teve medo. Teria enfim sua nova vida bem
longe – aceitou o convite da amiga Samira pra ficar em seu apê enquanto viajava
pelo mundo. Afinal, o aborto realizado no início do casamento estava finalmente
justificado. Nada mais a prendia. Nem marido nem amante. Estava totalmente
livre. Tinha seis meses pra encontrar emprego e casa pra morar. E uma vida
inteira pra visitar aquelas imensas livrarias...e os sebos... ir ao cinema... Tomar
sorvete no Ibirapuera... Aprender a andar de bicicleta... acredita? Não sei
andar de bicicleta. O vizinho de poltrona permaneceu inerte. Fechou os olhos também
e se despediu mentalmente de Jurandir, o marido paraplégico que a manteve
naquele relacionamento sem erotismo. Agradeceu a Anderson, o amante, pelos
momentos de amor e por ter feito enxergar que ninguém é de ninguém, como cantava
Cauby Peixoto. Quem imagina ter fidelidade por parte do parceiro, cônjuge,
namorado, amante, ficante, amiguinho de Facebook se ilude.
Amarga você, hein Leo? Leo abriu os olhos sentindo aquela
voz entrar em seus ouvidos e percorrer todos os seus vasos capilares como um
arrepio fúnebre. Não era o sujeito dos fones de ouvido. Ele permanecia imóvel.
Que sono! Ficou com preguiça de procurar de onde vinha a tal voz e fechou os
olhos outra vez. Respondeu mentalmente: sim, já fui mais romântica. Mas agora
vai ser assim. Nada de romantismo babaca. Minha prioridade é outra. Começo uma
nova vida. Novinha. Vou zerar tudo. Nasci hoje.
Um tranco forte e a poltrona de Leo é esmagada pelas
ferragens. Leo abre os olhos.
Sangue...fumaça... vidros quebrados... que cheiro horrível! Mas
que confusão é essa? Que gritaria! Por que estão chorando? Mamãe!!! O que você
está fazendo aqui?
Vim te buscar Leozinha.
Como assim, mãe? Isso é um sonho?
Depois eu explico. Vem cá meu bebê. Me dá sua mão. Vou te
contar. O amor cura tudo, Leozinha. Vamos andando.
Flutuando você quer dizer, mãe.
Cúmplice, dona Ana sorri e as duas almas se abraçam.
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